quarta-feira, 4 de outubro de 2017

memórias literárias - 536 - EU TINHA QUE VIR ...

EU TINHA
QUE VIR...
 

 
536
 
Uma cena chamou a minha atenção no aeroporto, enquanto aguardava a família que viria me buscar. Uma senhora saiu pelo desembarque aos prantos. Foi amparada por familiares que vieram buscá-la. Certamente um familiar muito querido ou amigo próximo teria morrido. Dor como esta somente quem já passou pode avaliar. Eu já passei. Sei o quanto é difícil. Pessoas que moram distantes, pessoas que estão geograficamente separadas, há tão pouca oportunidade de convívio pessoal!
 
Lembrei-me de um episódio do antigo seriado OS PIONEIROS. Uma senhora celebrava os seus aniversários todo ano, mas, para a sua decepção, os filhos, que moravam distantes (e as distâncias eram maiores no século dezenove, com estradas ruins nos Estados Unidos) jamais vinham para a celebração. Um dia a mulher conversou com o pastor e pediu para celebrar antecipadamente o seu próprio velório. O ministro da igreja, atônito, quis saber o porquê. Explicada a situação, concordou com o evento e convidou a igreja para a reunião. Antes, porém, ela enviara telegramas de notificação do falecimento aos parentes.
 
Quando a cerimônia teve início os familiares chegaram. Filhos, noras, netos, todos. Então, diante da sala repleta, ela deixa o quarto onde escondia-se e sai viva e bem vestida. Os filhos surpreendem-se e ralham com ela pelo blefe. Ela, então, explica: "Filhos, foi a única forma de reuni-los comigo; eu de fato irei morrer; mas por que vir no meu sepultamento, quando eu não terei mais a oportunidade de vê-los? Vocês estão aqui hoje e já é o meu presente de velório; celebremos o meu aniversário!" O episódio termina em lágrimas e em declaração de amor pela matriarca.
 
Nós fazemos de tudo para participar de um velório. Deixamos as atividades, pedimos dispensa do trabalho, ausentamo-nos das aulas, interrompemos as férias, tudo para cumprir o compromisso social com o defunto e demonstrar que ele era importante e relevante. Queremos que a família saiba. Mas este tipo de valor potencializado no ato do velório poderia ser antecipado para a prometida visita que nunca se fez. Poderia ser vivido com a pessoa ainda apta a alegrar-se com a nossa presença. Poderia ser desfrutada com flores de verdade entregues na mão e não flores às toneladas que lhe servirão de mortalha. Se perguntassem para uma pessoa a sua preferência, se gostaria de um velório cheio de gente ou de amigos e parentes mais próximos, certamente ouviriam-lhe dizer que gostariam de ter as pessoas presentes em vida. Depois de morta a pessoa nada vê e não saberá do suposto afeto e consideração.
 
Flores em vida desabrocham. Flores que enfeitam a morte apodrecem. Algumas vezes só poderemos dar as segundas, mas, se ainda tivermos chances, que entreguemos os ramalhetes perfumados aos queridos que estão vivos.
 
Wagner Antonio de Araújo

04/10/2017

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