TRAGÉDIA E SALVAÇÃO
TRAGÉDIA
E SALVAÇÃO
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O barulho foi alto; uma
trombada e uma queda. O carro bateu em quê? Correram para lá. No chão,
ensanguentado, com uma perna amputada e sangue a jorrar pelo chão, um homem
estirado de barriga para cima. Terno rasgado e sujo, rosto esfolado, nariz
deslocado, ele olha para cima, ofegante e sôfrego. Enquanto os carros param e os
motoristas descem, outros ligam para a ambulância e aos bombeiros. Para o homem,
porém, nada disso importa. Ele está morrendo.
Em seu corpo a impotência
completa: não consegue mexer-se. A dor mistura-se com a ardência e a sensação de
frio. As vozes sobre ele transformam-se num ruído distante. Seus pensamentos
estão muito distantes.
Ele pensa no que
aconteceu. O que saira errado? Atravessava a rua sem trânsito, nunca deixou a
prudência. Por que isto agora?
Ele corria para uma
entrevista de emprego. Sem dinheiro para pagar as contas, ouvia o choro de três
filhos e o sofrimento da esposa que desdobrava-se em faxinas e em quilos de
roupas que passava para os moradores do prédio. O condomínio estava atrasado. O
convênio médico cortado. Ia à pé para não ter que gastar
dinheiro.
As pessoas tentavam
confortá-lo ali no chão. Inútil a tentativa de colher alguma informação; ele não
conseguia falar. Apenas olhava para o céu.
Lembrou-se dos amigos que
tinha, pessoas que apreciavam o jantar ou o churrasco nos finais de semana. Era
popular e todos gostavam dele. Geralmente emprestava dinheiro e tinha muitos
admiradores. Mas a crise ceifou-lhe os amigos. Estes desapareceram de casa.
Bloquearam-no no whatsapp e no messenger. Eles não vinham mais à sua casa. Por
três vezes ligou para os mais chegados, mas a resposta foi uma só: ligue mais
tarde, estamos ocupados.
A ambulância demorava a
chegar; ele estava convulsionando. Ao voltar a si manteve-se inerte, mas os
pensamentos divagavam.
Lembrara-se de quantas
vezes os filhos desejavam um pouco mais de sua atenção, mas ele tinha o futebol
para assistir. A esposa queria mostrar algumas coisas que conseguira fazer no
curso de artes plásticas, mas ele dizia que não tinha tempo para futilidades.
Quantas vezes fora dormir de madrugada, sem ao menos perceber que haviam feito
uma surpresa para ele, colocando um presente na escrivaninha ou um bilhetinho de
amor junto da carteira! Ele ignorava estes pedidos de
atenção.
Os transeuntes fizeram um
muro humano, para que ninguém tocasse naquele moribundo e insistiam para que
alguém corresse ao posto de saúde implorar por socorro. Ele, contudo, com os
olhos baços, olhava para o céu.
Lembrava-se do pai
cristão. Lembrou-se das músicas que aprendera na escola bíblica dominical.
Também pensou naqueles inferninhos que o afastaram da igreja, sonhos de
adolescente repleto de hormônios: baladas, mulheres, cigarro, bebida. Nunca usou
drogas. Mas a vida tornou-se uma droga. Depois de tantos anos lembrou-se dos
sermões do pastor de sua igreja: "Lembra-te do Teu criador", "Hoje te pedirão a
tua alma"; "Cristo voltará, prepare-se!". Enquanto pensava, viu-se com o hinário
à mão, cantando no coral: "Meu amigo, hoje tu tens a escolha, vida ou morte,
qual vais aceitar? Amanhã pode ser muito tarde, hoje Cristo te quer
libertar!".
Após a terceira convulsão,
voltou novamente a si, sem poder mexer-se. Um par de lágrimas desceu dos olhos.
E, em pensamentos profundos e últimos, orou para Deus: "Senhor, perdoe a vida
distante que levei, a falta de atenção à família, o abandono dos teus
caminhos. Me perdoe! Me recebe em teus baços. Por Jesus.
Amém. "
Em seguida os que estavam
bem próximos gritaram: "Ele morreu! Ele morreu!"
No jornal da noite ninguém
noticiou. Mas Deus soube, viu e atendeu.
Wagner Antonio de
Araújo
03/10/2016
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