segunda-feira, 3 de outubro de 2016

memórias literárias - 366 - TRAGÉDIA E SALVAÇÃO

TRAGÉDIA E SALVAÇÃO



TRAGÉDIA

E SALVAÇÃO

366
O barulho foi alto; uma trombada e uma queda. O carro bateu em quê? Correram para lá. No chão, ensanguentado, com uma perna amputada e sangue a jorrar pelo chão, um homem  estirado de barriga para cima. Terno rasgado e sujo, rosto esfolado, nariz deslocado, ele olha para cima, ofegante e sôfrego. Enquanto os carros param e os motoristas descem, outros ligam para a ambulância e aos bombeiros. Para o homem, porém, nada disso importa. Ele está morrendo.
Em seu corpo a impotência completa: não consegue mexer-se. A dor mistura-se com a ardência e a sensação de frio. As vozes sobre ele transformam-se num ruído distante. Seus pensamentos estão muito distantes.
Ele pensa no que aconteceu. O que saira errado? Atravessava a rua sem trânsito, nunca deixou a prudência. Por que isto agora?
Ele corria para uma entrevista de emprego. Sem dinheiro para pagar as contas, ouvia o choro de três filhos e o sofrimento da esposa que desdobrava-se em faxinas e em quilos de roupas que passava para os moradores do prédio. O condomínio estava atrasado. O convênio médico cortado. Ia à pé para não ter que gastar dinheiro.
As pessoas tentavam confortá-lo ali no chão. Inútil a tentativa de colher alguma informação; ele não conseguia falar. Apenas olhava para o céu.
Lembrou-se dos amigos que tinha, pessoas que apreciavam o jantar ou o churrasco nos finais de semana. Era popular e todos gostavam dele. Geralmente emprestava dinheiro e tinha muitos admiradores. Mas a crise ceifou-lhe os amigos. Estes desapareceram de casa. Bloquearam-no no whatsapp e no messenger. Eles não vinham mais à sua casa. Por três vezes ligou para os mais chegados, mas a resposta foi uma só: ligue mais tarde, estamos ocupados.
A ambulância demorava a chegar; ele estava convulsionando. Ao voltar a si manteve-se inerte, mas os pensamentos divagavam.
Lembrara-se de quantas vezes os filhos desejavam um pouco mais de sua atenção, mas ele tinha o futebol para assistir. A esposa queria mostrar algumas coisas que conseguira fazer no curso de artes plásticas, mas ele dizia que não tinha tempo para futilidades. Quantas vezes fora dormir de madrugada, sem ao menos perceber que haviam feito uma surpresa para ele, colocando um presente na escrivaninha ou um bilhetinho de amor junto da carteira! Ele ignorava estes pedidos de atenção.
Os transeuntes fizeram um muro humano, para que ninguém tocasse naquele moribundo e insistiam para que alguém corresse ao posto de saúde implorar por socorro. Ele, contudo, com os olhos baços, olhava para o céu.
Lembrava-se do pai cristão. Lembrou-se das músicas que aprendera na escola bíblica dominical. Também pensou naqueles inferninhos que o afastaram da igreja, sonhos de adolescente repleto de hormônios: baladas, mulheres, cigarro, bebida. Nunca usou drogas. Mas a vida tornou-se uma droga. Depois de tantos anos lembrou-se dos sermões do pastor de sua igreja: "Lembra-te do Teu criador", "Hoje te pedirão a tua alma"; "Cristo voltará, prepare-se!". Enquanto pensava, viu-se com o hinário à mão, cantando no coral: "Meu amigo, hoje tu tens a escolha, vida ou morte, qual vais aceitar? Amanhã pode ser muito tarde, hoje Cristo te quer libertar!".
Após a terceira convulsão, voltou novamente a si, sem poder mexer-se. Um par de lágrimas desceu dos olhos. E, em pensamentos profundos e últimos, orou para Deus: "Senhor, perdoe a vida distante que levei,  a falta de atenção à família, o abandono dos teus caminhos. Me perdoe! Me recebe em teus baços. Por Jesus. Amém. "
Em seguida os que estavam bem próximos gritaram: "Ele morreu! Ele morreu!"
No jornal da noite ninguém noticiou. Mas Deus soube, viu e atendeu.
Wagner Antonio de Araújo

03/10/2016

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