83 - DIVAGAÇÕES NUM DIA DE
DESPEDIDAS
19/05/2013
Este foi um daqueles domingos
inesquecíveis, não tanto pelo tamanho dos eventos, mas pelo que eles significam
e significarão em minha vida.
Ontem, ao terminar de inspecionar os
meus e-mails, deparei-me com a notícia que me causou profunda comoção: o Pastor
Rivas Bretones, amigo de longa data, havia falecido no hospital, na luta contra
o câncer. Eu sequer sabia de sua enfermidade, pois até então se pensava que era
um problema de refluxo, o que, infelizmente, caminhou para um diagnóstico tardio
de câncer no pulmão. Para mim, o querido amigo havia viajado para os Estados
Unidos em visita a sua querida irmã Laura, mas a verdade era bem outra: estava
travando dura luta contra a enfermidade.
A notícia chegou a mim no momento em
que eu preparava a reflexão do domingo à noite, intitulada A BREVIDADE DA VIDA.
Que ironia do destino! Eu, depois de anos, convidado para pregar no púlpito do
saudoso conselheiro Pastor Josué Nunes de Lima, agora teria que provar de minha
própria mensagem, visitando a despedida do Pastor Rivas no Cemitério da
Paz!
Coloco-me na pele daqueles que são
idosos e que vêem cada um de seus amigos partirem. Eles olham aos noventa anos e
contemplam uma geração que não é a sua, com costumes que não são os seus, com
pessoas com quem não têm os mesmos laços de intimidade, afetividade,
cumplicidade e compartilhamento de experiências e cultura. E sentem-se
absolutamente sós! Vê-se nos viúvos ou viúvas bem idosos o partir próximo quando
perdem aquele referencial que lhes servia de âncora da temporaneidade, única
testemunha ocular dos anos vividos de suas infâncias e juventudes. Por lhes
faltar um partilhar de igual para igual logo sucumbem e
adormecem.
Todas essas reflexões vieram-me à
mente. Eu, um homem de meia-idade, de 47 anos e alguns meses, que sou
contemporâneo da penúltima geração, que tive o privilégio de conviver com alguns
dos últimos ícones espirituais de minha denominação e de outras agremiações
evangélicas, verifico a grande solidão e o grande vazio de cada herói que parte
e sucumbe diante do fim de seus dias. Aos poucos os referenciais que tive em
minha vida de crente, de seminarista, de pastor e, posteriormente, de atuante
denominacional, estão saindo da vida para adentrar às páginas esquecidas da
história. Esquecidas muito cedo, pois uma das primeiras providências dos que
ficam é decretar um "tempo novo", um "novo ministério", "uma nova unção" e fazem
o possível e o impossível para sepultar qualquer lembrança dos obreiros que
passaram, que fundaram suas igrejas, que abriram a picada na mata, que
suportaram as duras lidas, as perseguições, a evangelização difícil, as
construções das casas de culto, o doutrinamento, o discipulado. No máximo, o que
se guarda é uma sala com seus nomes ou um monumento na área de entrada. Alguns,
se possível, até isso tirariam.
Penso nos poucos que restam. Sim, os
poucos ícones que continuam vivos e atuantes. Penso naqueles que não se venderam
às facilidades do evangelicalismo moderno, midiático e mundano. Penso nos que
não aceitaram mudanças pelas mudanças, que não trocaram o púlpito pelo palco, o
louvor pelo show, a adoração pela coreografia, a reverência pelo ambiente de
carnaval, a bíblia pelo livro de auto-ajuda, a doutrina pelo "achismo". Penso
naqueles que se aposentam para não ver as barbaridades das quais poderiam ser
vítimas, pois suas "novas" ovelhas, seduzidas pelo ruído dos lobos disfarçados
de ovelhas e de Satanás disfarçado de modernidade eclesiástica, estariam a ponto
de fazê-los abortar do ministério à força. Penso naqueles que pregaram, que
ensinaram, que presidiram, que lutaram, que trouxeram progresso, e que agora,
envelhecidos pelo tempo, encontram-se nas casas de repouso, nos fundos das casas
dos filhos, ou vivendo de favores de algum crente generoso. Estes nunca recebem
convites para nada, muito menos visitas ou lembranças, exceto de heróis como o
conhecido irmão Grigório, que, conquanto não seja pastor, não esquece de nenhum
dos operários do Reino, principalmente dos carcomidos pela batalha dos
anos.
Penso no imenso vazio que fica.
Rivas Bretones partiu. O que fica em seu lugar? Josué Nunes de Lima já está na
glória celestial. João Rodrigues dos Santos, saudoso paranaense que com amor
pastoreou a IB Gileade, na zona norte de SP, há anos partiu para Jesus. E o que
dizer dos mais antigos? Parece que a nova geração não aceita ter sido sucessora
dos pioneiros, dos que lhes trouxeram as tochas do evangelho; eles querem
reinventar a roda e sentem-se ministros de um novo evangelho, ao gosto do
freguês. E os resultados não custam a vir. Sei de tantos casos! Uma igreja, cujo
pastor faleceu, grande lutador que veio da Letônia, jamais acertou com o seu
obreiro e hoje tem o ministério vacante mais uma vez. Outra, cujo pregador era
um mestre dos púlpitos e da oratória, teve por sucessor alguém que se ofendia em
ouvir alguém falar bem do antecessor. Terminou bestialmente o seu pastorado.
Agora ouvi de outro que mandou tirar todas as benfeitorias que lembravam o
fundador de sua congregação, pois eram coisas bobas e agora viveriam "uma nova
história".
Meu Deus, que geração é essa? Sei
que há pastores aposentados que me lêem. Sei que há crentes perplexos e que me
dizem: "pastor Wagner, onde estão os pastores que amavam a Cristo e amavam o
rebanho?" Bem, posso dizer de poucos, mas posso garantir que há sete mil joelhos
que não se dobram e nunca se dobrarão ao Baal da
ingratidão.
E eu, com minha limitação, com as
minhas memórias em ebulição, com o meu peito vazio com a perda dos amigos, com a
ausência dos meus mestres tão amáveis e tão bíblicos, só posso concluir o
seguinte: a tocha veio para a mão de outros mais jovens e isso me inclue nesse
grupo. Que legado eu deixarei para a próxima geração? Que tipo de pastor eu devo
ser para que outros vejam em mim o que eu vejo nos meus mestres que estão
partindo? Que dignidade ou capacidade tenho? Sei que nenhuma. Mas sei que a
nossa capacidade vem de Deus, a mesma que esteve disponível aos meus mestres que
partem. Dispor dela é decisão nossa, que passa por joelhos calejados de
dobrarem-se em oração, de bíblias surradas de tanto serem lidas e de coração
crescido de tanto amar. Ah, amar!
Talvez a minha geração não tenha
aprendido a amar. Amar as ovelhas, as pessoas da igreja, não as considerando
massa de manobras ou apenas números para vaidade pessoal: "pastoreio mil
pessoas". Pessoas não são como gado, contadas a grosso, mas são ovelhas,
chamadas pelo nome, uma a uma. E amar ao rebanho, às pessoas, é o que a minha
geração e as próximas não estão aprendendo nos bancos das faculdades teológicas
modernas. Aprendem a discutir o indiscutível, a inspiração das Escrituras
Sagradas, aprendem a duvidar de Deus, mas não aprendem a conviver com as pessoas
salvas pelo Senhor. Creio que amar pessoas seja um dos segredos dos mestres.
Rivas Bretones, Josué Nunes de Lima, João Filson Soren, Manoel Avelino de Souza,
TC Bagby e tantos outros amavam as suas ovelhas. E como
amavam.
Também não temos aprendido a ter
solitude. Não a solitude de solidão, de depressão, de vazio; essa encontramos
com facilidade no acúmulo de atividades ou no abandono da família. Solitude é
aquela doce comunhão diuturna com o Senhor. Pastores não oram mais. Oram sim,
mas não oram como deviam. A maioria mente. Diz que ora, mas apenas reza. Diz que
ora, mas apenas cumpre o protocolo. E eu, no acúmulo de atividades acabo sendo
seduzido pelo canto do "fazer coisas importantes" e nem me recordo que Maria, a
irmã de Marta, recebeu os elogios por gastar tempo com o Senhor, muito mais do
que Marta, que se cansava em fazer coisas para o Senhor. Comungar é mais
importante do que fazer coisas. E a opção quase nunca é a solitude. Acredito que
os meus antigos e saudosos amigos conheciam muito mais de Deus num dia de
comunhão do que eu em toda a minha vida...
Lembro-me quando o Pr. Timofei
Diacov (graças a Deus bem vivo ainda, e há de ser assim por muitos mais anos, é
o que peço ao Senhor), no afã de me dizer como eu deveria ler a bíblia, falou-me
de forma clara: "não vá à bíblia para que ela concorde com suas idéias; renda-se
ao que ela diz, e você encontrará a vontade do Senhor". Conselho magnífico, que
me motiva dia após dia a andar e a remar contra a maré das mudanças, pois a
minha bíblia não mudou, não muda e nem mudará. Não importa o que eu ache, o que
a minha filosofia, a minha sociologia, o meu coração pecador considera; é a
bíblia a minha única regra de fé e prática, e sem dissecações empíricas ou
modernistas. Que bênção manusear a minha bíblia de 1979 e ver que ela, à
semelhança do meu Deus, não mudou!
Ah, quantas memórias! Quantos
pensamentos! Não sei quanto tempo eu ainda viverei, nem por quanto tempo
pastorearei a mesma igreja ou qualquer outra. Mas uma coisa eu quero: jamais me
esquecer dos heróis que se vão. E nesse afã tudo farei para torná-los imortais
para quem quiser ouvi-los ou lê-los, através de publicações, de blogs, de
memórias, de entrevistas. Não devemos deixar a tão grande nuvem de testemunhas
apenas subjetivamente, mas usar de seus registros deixados, como usamos os de
Spurgeon, de Bunyan, de Calvino, de Lutero, de Langston, de Crabtree. Eles
precisam continuar a falar e sua memória precisa ser
lembrada.
Quero caminhar com o meu Senhor até
o fim. E estar pronto para partir dia após dia, e pronto para ficar mais um
pouco a cada dia. E que, no final da caminhada, eu possa dizer como o apóstolo
Paulo, Rivas Bretones, Josué Nunes de Lima, Rubens Lopes, TC Bagby, WC Taylor,
João Rodrigues dos Santos, "combati o bom combate, terminei a carreira, guardei
a fé".
Ajuda-me, Senhor, a ser fiel. E a
seguir os bons exemplos daqueles que recolhes.
Amém.
Wagner Antonio de
Araújo
com o Pr. Josué Nunes de Lima
com o Pr. Rivas Bretones
Pr. João Rodrigues